quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Blecaute


Eu tinha luz nos olhos...
Um dia, uma sombra se instalou...
A nuvem escura vinha do horizonte de minha alma, imponente. Era feita de erros do passado, remorsos, arrependimentos, amarguras, perdas e derrotas. Um vento forte e morno a anunciou, e em seguida a voz grave e rouca de um trovão estremeceu-me dos pés à cabeça. Raios e faíscas ofuscaram-me a vista, e arrepiaram-me os pelos. Então, a tempestade mostrou-me toda sua força, primeiro com uma chuva de pedras, que eram feitas de palavras pontiagudas que proferi injustamente. Depois, uma chuva de lágrimas que causei inundou-me o ser e afogou-me em desgosto...
Eu tinha luz nos olhos...
Um dia, uma sombra se instalou...
Toda luz se foi. Eu fui em busca de velas chamadas perdão, de lanternas chamadas humildade. Mas já era tarde demais...
Eu tinha luz nos olhos...
Um dia, uma sombra se instalou...
E eu fiquei na escuridão... Blecaute!

(Danilo Kuhn)


sábado, 23 de novembro de 2013

O senhor do correio furou a fila do restaurante

Pacato Cidadão estava na fila do buffet a quilo do restaurante, cansado, mal dormido, estressado, apressado, essas coisas típicas das pessoas normais. Nisso, o Senhor do Correio se achega, de mansinho, com sua marmita de quatro andares, olha para um lado, olha para o outro, dá uma disfarçadinha e, na maior cara de pau, fura a fila. Simplesmente começa a encher os compartimentos daquela marmita que mais parecia um prédio desmontável.
Pacato Cidadão engoliu a indignação, mas não se absteve de imaginar como seria se ele tivesse intervindo.
– Com licença, meu senhor, você está furando a fila – teria dito, não disfarçando insatisfação, mas mantendo certa educação.
– Não... Não... Eu combinei com a dona do restaurante... – tentaria desviar o senhor.
– Mas isso não é justo, meu senhor. Por que o senhor tem esse direito e nós não? O senhor por acaso é melhor do que nós?
– Eu não mandei essa espelunca não oferecer o atendimento adequado! Essa fila é uma merda! – cuspiria o senhor, derrubando de volta a comida que já havia armazenado, vociferando outros xingamentos à dona e aos funcionários, causando mal-estar no estabelecimento, ficando o Pacato Cidadão, em sua lógica, mal quisto pelos proprietários do restaurante, já que haveria semeado discórdia entre os clientes, e feito a casa perder um bom cliente.
No entanto, Boca Grande também estava na fila e, como não atura injustiças e aproveitamentos de qualquer espécie, bradou sem tardar, saltando a veia do pescoço, e interrompendo as conjecturações de Pacato Cidadão.
– Mas isso é uma pouca vergonha! Aquele cara tá furando a fila!
A funcionária que trabalhava na balança arregalou os olhos e empalideceu. O Senhor do Correio, cheio de si, fez que não ouviu.
– Quer dizer que se amanhã eu for no correio com uma pilha de sedex eu não preciso tirar senha? Eu posso passar na frente de todo o mundo assim na cara dura?
E o senhor continuava ignorando Boca Grande.
– Tu não vai fazer nada? Tu vai deixar assim? – questionava à funcionária. – Mas que barbaridade!
Tanto foi que o Senhor do Correio terminou de se servir, pagou e foi embora, enquanto Boca Grande resmungava aqui e ali, argumentava a um e outro. Na hora de pagar sua conta, Boca reclamou à proprietária.
– Mas veja bem – tentava apaziguar ela – eu não posso me indispor com um cliente... Não vou me incomodar... Isso nunca acontece... Você tem certeza que ele furou a fila? Talvez você tenha se enganado...
– Garanto que se enganou – disse uma voz na fila do caixa – esse aí é um boca grande!
– Melhor ser boca grande – respondeu Boca – que não ter boca pra nada!


(Danilo Kuhn)


quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Escravo de mim


Eu era escravo de mim...
Trabalhava em regime escravo-de-si-mesmo.
Amava como quem prende a si próprio em uma masmorra.
Sorria como o refém sorri ao carcereiro.
Beijava como quem bate ponto na empresa.
Comprava tudo o que os olhos mandavam, ainda que o bolso gritasse “não!”.
Comia pela fome de amanhã.
Bebia pela sede da semana inteira.
Fazia todas as minhas vontades, passando por cima de tudo e de todos.
Mas houve um dia em que arrebentei as correntes, me libertei das algemas que eu mesmo me impunha, e escrevi de próprio punho a minha alforria.
Hoje, estou livre do meu egoísmo que tornava solitário, do meu orgulho que me cegava, da minha ganância que me empobrecia, do meu sucesso que me fazia decadente.
Quem se liberta de si mesmo, abre as cortinas da casa escura em que habita e vislumbra um mundo infinito lá fora, à espera...
Eu era escravo de mim...

(Danilo Kuhn)


segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Dez maneiras de não morrer


Se não quiseres morrer, semeia. E a semente por ti semeada germinará sobre teu nome.
Se não quiseres morrer, planta. E à sombra da tua árvore alguém há de descansar.
Se não quiseres morrer, colhe. E o fruto do teu trabalho alimentará tua memória.
Se não quiseres morrer, constrói. E as futuras gerações hão de saudar tua obra.
Se não quiseres morrer, escreve. E cada palavra escrita na tua linha da vida será uma pedra do alicerce de teu templo.
Se não quiseres morrer, ama. E teu amor manterá viva tua lembrança em saudosos corações.
Se não quiseres morrer, trabalha. E teu suor servirá de exemplo.
Se não quiseres morrer, chora. E tua dor terá sido a virtude de quem te consolou.
Se não quiseres morrer, sorri. E tua alegria terá sido combustível a quem confortaste.
Se não quiseres morrer, vive. E tua vida não terá sido em vão.


(Danilo Kuhn)


sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Por cinco minutos de fama


Ele quis galgar o merecido status de homem bem-sucedido e de empresário de renome e de talento empreendedor, foi por isso que renunciou ao seu amor camponês, puro como o mais fresco riacho e como os mais tenros morangos silvestres, para afogar-se em matrimônio frígido e insípido com a socialite sem graça, mas tapada na grana.
Ela quis exibir sua beleza angelical de pele alva e cabelos dor-do-ouro na capa da revista, foi por isso que deixou de lado seus exigentes padrões estéticos e suas expectativas afetivas juvenis para enlaçar-se com o editor de caráter duvidoso e feições repugnantes.
Ele quis curtir uma de bon vivant e aproveitar os prazeres que o mundo lhe oportunizava e lhe oferecia de bandeja, foi por isso que largou o cargo de confiança na empresa da família e abandonou a esposa com câncer e dois filhos pequenos e dependentes para aventurar-se em viagens exóticas regadas à orgias gastronômicas, bebidas, e sexo fácil e descartável.
Ela quis realizar seu sonho infante de cantar em programas de televisão em rede nacional e fazer sucesso estelar, foi por isso que abandonou as fervorosas e dedicadas orações e os cândidos louvores do coral da igreja para começar a cantar funk com letras de conteúdo pouco bíblico e coreografias pagãs.
É... Tem muita gente que vende a alma, por cinco minutos de fama.

(Danilo Kuhn)