quinta-feira, 25 de abril de 2013

É lá fora que eu me vejo por dentro


A rotina tece véus em meu olhar que tudo o que vejo é trabalho e preocupação. São contas a pagar, horários a cumprir, compromissos a honrar. E os ponteiros do relógio são flechas apontadas para mim que me apressam a chegar ao fim do dia com o dever cumprido. Dentro do escritório eu não vejo através da janela o que há lá fora, apenas papéis, números, cifras. Não vejo o cumprimento do sol em reverência a mais um dia que ganho, não vejo o aceno das flores nos canteiros a encantar minha passada, não vejo a dança das folhas das árvores, das nuvens, das estrelas, do vento, da chuva a embalar minhas horas. Não vejo aos outros. Não vejo sequer a mim mesmo. E quando estou assim, cego, só há um remédio: fugir do corre-corre da cidade e me exilar, mesmo que apenas por uma tarde de domingo, na paz do campo.
É lá fora que eu me vejo por dentro. Vejo a imensidão dos verdes campos da alma, do horizonte por ser descoberto. Vejo o coração em flor prenunciando a primavera do amor. Vejo-me flutuar ao sabor do ar puro, manso, fresco e adocicado do interior. Vejo-me beber da água cristalina da cacimba da amizade verdadeira, do sorriso franco, da humildade, da fé, da confiança, da sinceridade. Vejo-me comer dos frutos da terra – a mão de Deus e Sua generosidade. Vejo-me a aprender com os animais, com a natureza, e com as coisas simples, que são as mais importantes.
Sempre que a cidade me cega, eu abro os olhos no campo. É lá fora que eu me vejo por dentro.
 
(Danilo Kuhn)

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Insegurança


Eu caminhava e então perdi o chão, eu navegava sem ter direção, eu não sabia pra onde ia...
Inseguro está aquele que não sabe exatamente onde pisa, quem é, pra onde vai, de onde veio. Todos nós.
Inseguro está quem não sabe ao certo o dia de amanhã, quem olha o passado com arrependimentos, quem está no hoje com a cabeça no ontem ou no amanhã. Todos nós.
Insegura a calmaria que prenuncia a tempestade. Tudo é um ciclo, e pressentimos isto.
Inseguras as grades que não trazem proteção, aprisionam. O homem se protege dos outros se tornando prisioneiro de si mesmo.
Insegura a mais alta masmorra quando o medo ganha asas.
Inseguro o mais profundo porão na má companhia da solidão.
O conforto do lar oprime corações aventureiros, poda voos mais altos.
Máscaras de alegria escondem corações entristecidos, desesperados.
A cidade pacata atrai oportunistas, quando a tranquilidade torna a segurança frouxa, abaixa a guarda. E quem rouba, rouba dos outros e de si mesmo ao mesmo tempo. Rouba o trabalho alheio e a luz da própria alma.
Eu caminhava e então perdi o chão, eu navegava sem ter direção, eu não sabia pra onde ia...

(Danilo Kuhn)



Barrados no baile


O que busca o olhar vago daquele casal de idade, nesta turística cidade, caminhando sem ter pressa no calçadão da praia durante a tarde mansa, quase como se pudessem parar no tempo? Não busca nada, já se encontraram, há anos. Suas almas admiram paisagens, andam vagarosamente de mãos dadas, saem para jantar juntos, viajam a lugares que lhes façam bem, aproveitam a estadia em si mesmos. Já não sentem sede: bebem um do outro.
Ontem à noite, olhares sedentos de vida entrecruzavam-se durante a festa. Um jovem casal, particularmente, olhava-se com sede do futuro que seus imaginários construíam, simultânea e individualmente. Ela já o conhecia, já o sonhava, porém sem muita esperança. Ele, mais vivido e provado, pusera os olhos pela primeira vez naquele ser que consolava seus anseios num simples olhar. Enquanto a festa rolava, reuniam coragem para unirem-se, preencher o vazio entre si com o gesto do abraço, com o enlace, matar a sede. Mas foram interrompidos. Barrados no baile. A polícia interveio na festa que já andava a incomodar àqueles que nos arredores queriam apenas dormir a madrugada, e não bebe-la.
O que busca o olhar vago daquele casal de idade na moldura de um quadro pintado em óleo sobre tela? Não busca nada. Buscou no passado, mas não encontrou. A polícia interveio. Durante a dança da vida, foram barrados no baile.

(Danilo Kuhn)