quarta-feira, 24 de julho de 2013

O campo sofre calado


O campo sofre calado, ninguém lhe ouve os lamentos; lavouras de esperança padecem à praga tributária que se gruda às folhas verdes e lhes suga a seiva.
O campo sofre calado, ninguém lhe ouve as súplicas; sementes de suor e oração não encontram terras férteis e agonizam entre pedra e espinho.
O campo sofre calado, ninguém lhe ouve os reclames; tratores sem coxilhas, arados sem terra, sementes sem água, foice sem pasto.
Plantações de sonhos não realizados.
Na cidade, homens de terno e gravata pensam que se alimentam de seu trabalho, seus empregos, seus cargos. Esquecem que não brotam verduras do asfalto, tampouco há rebanhos em pastagens de cimento. Leite ácido, hambúrgueres de carne de minhoca, salgadinhos de isopor, sabores e cores de artifício, chicletes de couro.
Crianças desconhecem animais da criação rural, nunca pisaram num riacho, caminharam na mata virgem, ou plantaram uma árvore. Acostumam-se com o ar de enxofre, jamais degustarão a brisa fresca interiorana.
Mas haverá, depois do escuro, um tempo em que a enxada e o campo serão ouvidos. E o pão nosso de cada dia, sobre a mesa, contará a sua história.

(Danilo Kuhn)


quinta-feira, 11 de julho de 2013

Greve de Deus


Dizem que a bagunça na Terra era tanta, que Deus resolveu fazer greve. E assim foi.
De manhã, o sol não nasceu. Ninguém pôde ouvir os cantos dos pássaros, ou vislumbrar os matizes da aurora, porque não amanheceu. Mas as pessoas não repararam, e seguiram sua vida normal.
À noite, a lua não saiu. Nenhum casal apaixonado admirou a trilha prateada na lagoa, nenhuma criança sorriu ao ver o sorriso da lua, porque a noite não teve luar. Mas as pessoas não repararam, e seguiram sua vida normal.
Pelas matas, os riachos não correram. Ninguém pôde ouvir a música das águas, tampouco nadar contra a corrente. Mas as pessoas não repararam, e seguiram sua vida normal.
Nas cidades, as flores não se abriram. Nenhum caminhante encantou-se com um desabrochar, nenhuma menina deixou-se embriagar pelo perfume das rosas. Mas as pessoas não repararam, e seguiram sua vida normal.
Entristecido com a falta de efeito de Sua greve, Deus decidiu dar a cartada final, sem dó ou piedade. Foi então que Ele fechou todos os Seus ouvidos e não atendeu a mais nenhuma oração. Toda e qualquer prece seria em vão. Mas as pessoas, que já não mais rezavam, não repararam, e seguiram sua vida normal.
Eis que o Todo-poderoso alterou os planos. Reuniu todas as Suas forças e pintou o mais colorido alvorecer, forjou a mais prateada lua, compôs o mais sonoro riacho, elaborou o mais inebriante perfume, rezou a mais eloquente oração. E assim, somente assim, através do Seu trabalho, tocou novamente ao coração dos homens.
Em vez de não fazer, fazer melhor. Ninguém reza ao Deus da greve.

(Danilo Kuhn)



quinta-feira, 4 de julho de 2013

E depois de tudo, a gente volta pra vidinha...


A gente sai às ruas, aos milhões, pinta a cara, ergue cartaz.
A gente protesta, vira crítico do dia pra noite, politizado.
A gente acha que tá tudo errado lá fora, que até dá uma espiadinha pra dentro de si.
A gente vira tolerante, execra preconceitos, reivindica direitos.
A gente faz passeata, mostra nossa força, nosso poder de união.
A gente acorda, a gente cobra, a gente faz revolução.
E depois de tudo, a gente volta pra vidinha...
– O gigante acordou... – bocejo.
– O gigante... acordou... – outro bocejo, já com olhos semicerrados.
– O gigante... – tornou a dormir.
Mude a si mesmo. O resto, é transitório.

(Danilo Kuhn)