sábado, 28 de setembro de 2013

De bota e bombacha


Lá fora, o galo canta e a passarada desperta enquanto a aurora desponta no lombo da coxilha, onde um quero-quero sentinela saúda o nascer do dia.
Aqui dentro, a chaleira chia pra aquentar o mate e a vida enquanto o violão dedilha velhas milongas, onde a alma canta seus amargos...
Lá fora, a bicharada pede bóia e se achega ao rancho enquanto num capão de mato as jacutingas e os pombões compõem uma canção matinal, onde as árvores nativas dançam ao sabor do vento.
Aqui dentro, a rádio toca um clássico da Califórnia enquanto a erva lavada traz um gosto de saudade, onde aquela china bonita ainda cativa um coração de cimento...
Quem tem o Rio Grande em seus adentros, não precisa sê-lo lá fora.
Lá fora, a lida de bota e bombacha.
Aqui dentro, uma homenagem.


(Danilo Kuhn)


sábado, 21 de setembro de 2013

Saber entardecer


Desde a aurora de nossas vidas, recorremos mundo em direção ao pôr-do-sol.
Há dias ensolarados, quando irradiamos felicidade, boa-vontade e otimismo.
Há dias nublados, de céu encoberto, neblina da alma, em que mal sabemos para onde ir, onde estão nossos sonhos, nosso chão.
Há também dias de tempo feio, viração, temporais em nossos adentros que, depois de nos revolucionar, trazem a bonança.
Dias de chuva a encharcar o chão e os olhos.
Dias de seca no coração.
Dias de vento da mudança.
Dias de calor, primavera do amor.
Dias de hibernação.
Mas um dia chega o dia do nosso entardecer. Antes mesmo de ele chegar, sentimos que se aproxima, pois todo o dia sabe que seu destino é o horizonte. Todos nós temos uma bússola; buscamos um norte durante a vida, mas rumamos sempre para o oeste, ao crepúsculo.
É preciso, portanto, saber entardecer. E a melhor maneira é manter auroras na alma.
Quem entardece sem lume no olhar, se apaga.
Quem entardece sem brio, se curva.
Quem entardece sem lutar, se entrega.
Quem entardece sem amor, não ouve estrelas.
Quem entardece sem fé, anoitece.
Não é porque o sol sabe do poente que ele não brilha.
É preciso saber entardecer.


(Danilo Kuhn)


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Adote um bichinho!


        Acarinhava meu cachorrinho de estimação todos os dias ao sol do meio-dia, o qual eu havia escolhido dentre tantos de uma ninhada porque, ao me agachar, ele não pensou duas vezes e foi subindo pela minha roupa até alcançar minha face e me lamber. Ele me acompanhou por quinze anos, metade da minha vida. Eu e meu pai o enterramos, passamos meses vendo um vulto branco a nos acompanhar. Eu sempre sabia quando o pai passava de caminhonete perto do colégio, eu reconhecia a voz do meu cachorro latindo da carroceria. Até hoje o meu pai se engana, vez em quando, e chama de “Sucata” o Bóris, nosso atual cachorro.
Lembro que certa vez adotei uma gata de rua, batizada de “Só Love” porque era muito carinhosa. Ela deu sete filhotinhos, e neles coloquei fitinhas com a inscrição “me adote”, para lhes arrumar um bom dono.
Tive porquinhos-da-índia, que meu pai dizia terem fugido de uma aldeia e que a dita índia os estava procurando desde então. No entanto, quem ficou procurando por anos fui eu. Meus pais acharam os porquinhos mortos, o viveiro aberto, provavelmente pelo Sucata. Para eu não ficar bravo com o cachorro, me mentiram que eles tinham fugido. Lembro de ter ficado dias procurando, dando voltas na quadra. Só fiquei sabendo a verdade vinte anos depois!
Eu também tive hamsters: um deles, certa vez, se escondeu detrás do vão da minha escrivaninha, me deixando muito preocupado; outro, um vizinho sequestrou, eu vi ele e um amigo dele pulando o muro de casa, fugindo com o hamster, depois eu reclamei para a mãe dele e somente uma semana depois o bichinho reapareceu; e outro que o Sucata matou, pois havia fugido da gaiola, quando resolvi cremar o pequeno roedor, com direito a ritual e comoção.
Também tive um cachorrinho, filho do Sucata, que morava no sítio, o qual batizei de “Caim” com o intuito de dizer aos meus amigos que o meu cachorro era o único no mundo que sabia dizer o nome dele, bastava pisar em seu rabo. Ainda bem que nunca fiz isto, nem deixei que o fizessem.
E lembro que um dia eu e minha irmã ganhamos de presente um hamster cada um. Era um macho e outra fêmea. Eu, mais velho, me adiantei e disse “o meu é macho”! Minha irmã, para não perder, e com aquela criatividade inocente e perspicaz que só uma criança pode ter, por sua vez, disse “e a minha é macha”!
Ah! Estas histórias... Só pode contar quem já adotou um bichinho...
E você? Tem histórias como estas para contar? Não? Então... Adote um bichinho!


(Danilo Kuhn)



sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Onde o sol não nasce pra todos


Tem gente que coleciona garrafas de cerveja, as expõem na estante como se cada gole, cada levedura, cada sabor pudesse permanecer em sua boca.
Tem gente que coleciona corações como se fossem troféus, como se cada pessoa que lhe deu o coração o tivesse perdido para sempre.
Tem gente que coleciona decepções, não percebendo que a única decepção que se pode ter é consigo mesmo.
Tem gente que coleciona vitórias, as grita aos quatro ventos, como se as derrotas não fossem importantes.
Tem gente que coleciona medos; não sai de casa, não caminha à noite, não fala o que pensa, não vive.
Tem gente que, inclusive, coleciona vazios. Eu, coleciono auroras. Sempre que posso, acordo cedo e vejo o sol nascer. Assim como não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois ele nunca é o mesmo, nem você, nunca uma aurora é igual à outra.
Já vi auroras da mesma janela, num dia lilás e com direito a trovões azul-celeste ao oeste, e noutro vestida em brumas, noiva do dia.
Já vi auroras refletidas nos açudes, no espelho da lagoa, nas pedras da rua e nas paredes das casas.
Já vi auroras onde o azul-claro e o rosa namoravam entre nuvens. Já vi auroras no campo, sempre mais sonoras.
Já vi auroras sob o negrume da tempestade, detrás do verde-musgo do vendaval.
Já vi auroras por entre as venezianas, esmaecidas pelas cortinas. Mas nenhuma delas se compara à aurora do teu olhar... Onde o sol não nasce pra todos.


(Danilo Kuhn)